Coleção 'Autobiografia'

As artes desta coleção são inspiradas pelos problemas que enfrento diariamente por conta da minha saúde mental destruída pelos anos. Elas são uma breve exposição do que é ser uma pessoa com autismo, altas habilidades, superdotação, TDAH e consequentemente depressão crônica e transtorno de ansiedade numa sociedade que não se importa e que faz questão de tornar as coisas ainda mais difíceis. Cheguei em um ponto onde acho que não faz mais sentido fazer rodeios em relação aos meus pensamentos suicidas, rodeios em relação a esse assunto mais atrapalham do que ajudam. Penso constantemente em terminar a minha vida, talvez seja o pensamento que mais ocupa minha cabeça todos os dias. É como se outra versão minha estivesse gritando direto no meu cérebro que isso é o melhor para mim. “Vou morrer de qualquer jeito, todos vamos, então para que eu deveria sofrer, por mais algumas décadas, talvez, para ter o mesmo fim?”. Uma variedade absurda de remédios não me ajudou, terapia não me ajudou, nada ajudou. Todos temos nossos sofrimentos, os meus conversam comigo todos os dias e talvez não sejam muito diferentes dos seus. Ao longo da vida precisei mascarar tanto o meu autismo, para poder conviver com os neurotípicos, que eu mal sei quem sou de verdade atualmente, por trás da forma como aprendi a me comportar. Preciso filtrar tanto os meus pensamentos para ter alguma chance de ser compreendido, que chega em um ponto onde a própria mensagem se perde e a solidão que sobra é tão grande que precisaria de um nome próprio para poder talvez ter a dimensão correta. A falta de sentido ao ter que sobreviver fazendo algo sem sentido em um mudo sem sentido, enquanto sofremos para estar aqui por mais tempo, para viver apenas variações das mesmas coisas, criou dores reais em mim. Ficar preso em ciclos de pensamento autodestrutivo me machuca, forçar mais um dia de uma rotina capitalista imbecil me machuca, não ter com quem conversar na profundidade que preciso me machuca, viver num ambiente inóspito para o meu tipo de mente me machuca. E é uma dor real, não é uma dor figurativa, mas eu não sei explicar onde é que dói. Acho que é algo parecido com as dores fantasmas que amputados sentem, quando um membro do corpo que já não existe, mas causa dor como se ainda estivesse ali. Minha dor é enorme e é como uma dor fantasma em um lugar para onde não sei apontar com certeza, às vezes é perto do peito, às vezes no meio da cabeça, ou um intermediário desses dois, é difícil dizer. Cheguei no mais baixo que já estive com a depressão e isso trouxe um sentimento novo. O sentimento de que as coisas que me envolvem estão no fim, um sentimento de que tudo está se concluindo e o meu ciclo está fechando. Eu ainda consigo segurar os impulsos que tentam me forçar a concluir esse ciclo, faço isso com a ajuda de todo o ódio que acumulei em mim ao longo dos anos, esse ódio que existe também contra a própria depressão, um ódio que no momento consegue me convencer a esperar. Esperar o quê? Não sabemos. As dores que tenho que suportar nesse ambiente inóspito que se tornou a minha vida, não são as únicas coisas difíceis de explicar. Muitos dos sentimentos que causam essas dores parecem nascer e fazer sentido apenas dentro da minha cabeça, em camadas que eu não conseguiria traduzir em palavras, por mais que eu já tenha tentado. É aqui que comecei, com dificuldade, esta coleção autobiográfica. Ela é minha tentativa de explicar algumas dessas coisas. Ela é minha tentativa de ajudar outros como eu a formalizar esses sentimentos em algo fora das nossas cabeças. Houve um tempo que ressoar com pessoas que pareciam sentir o mesmo que eu me ajudou a seguir, me ajudou a sentir que fazia parte de algo e que não era tão sozinho assim no meio disso tudo. Hoje em dia é difícil demais isso acontecer, e imagino que não seja apenas comigo, então essa é minha contribuição para algo parecido, algo que talvez ressoe em outros. Eu não sei, sinceramente, por quanto tempo continuarei aguentando tudo e trabalhando nisso, não sei se por toda uma vida ou só mais um dia, mas até lá tentarei ilustrar essa autobiografia como um dicionário visual das coisas que não consigo explicar apenas com palavras.

  1. A Dança dos Reflexocenários

    Enfrentando o período mais desafiador da minha vida, lutando contra a depressão e a ansiedade, percebo uma divisão clara dentro de mim. Há, em um canto escuro da minha mente, uma sombra implacável que dança com um fervor sombrio, um ente que me sussurra incessantemente sobre o alívio do fim. Ela me confronta com a dura realidade dos ciclos repetitivos e vazios da sociedade, ciclos esses que parecem moer lentamente qualquer esperança ou alegria que possa surgir. Essa sombra empurra minhas dores e angústias para além dos limites do suportável, levando-me a questionar o valor da minha própria existência. Em contrapartida, há uma luz frágil e vacilante, mas surpreendentemente tenaz em sua presença. Ela se esforça bravamente, movendo-se numa dança desigual contra a sombra, lutando para não ser engolida pela escuridão que ameaça dominar cada momento de lucidez. Essa luz, embora tímida, carrega uma força inesperada; ela tropeça e balança, mas não desiste, pois sua queda significaria o fim definitivo não só dela, mas de nós todos.

  2. Cabelo Humano

    Eu tenho pensado muito sobre como parece que o inferno de “outro eu” existe e fica dentro da minha cabeça, dentro de cada memória e qualquer lampejo de pensamento. Aqui é um lugar inóspito que eu não recomendaria a visita para ninguém. É um lugar onde um ciclo crescente de pensamentos autodestrutivos se repete. Do bullying na minha infância, que virou um ódio contra o mundo até a morte da Lisa, que parece ser algo que nunca conseguirei superar. Tudo o que eu já vivi e já sofri renasce diariamente aqui dentro e eu revivo tudo de forma cada vez mais intensa. De novo e de novo. As coisas não acalmam. Toda essa multidão, de minhas versões do passado e versões que nunca existirão fora da minha cabeça, discute tão alto que eu mal consigo ouvir meus próprios pensamentos do presente. Eu preciso cuidar o tempo todo para não cair nessa profundidade e me perder de mim, esquecer quem eu sou ou quem eu acho que deveria ser. E, por mais lotado que seja aqui dentro, esse é o lugar mais solitário que eu já encontrei ou vou encontrar.

  3. Monstro

    Recentemente, tenho enfrentado uma crise profunda de falta de sentido e desconexão, uma alienação severa como se eu fosse um estrangeiro perpétuo em meu próprio universo, vivenciando a "náusea" sartreana da existência sem razão. Cada tentativa de comunicação apenas amplia meu isolamento, transformando a solidão em uma presença constante. Como se eu falasse um idioma desconhecido. Minha arte e escrita são tentativas de quebrar esse vazio, mas elas são ignoradas por falta de validação externa. Essa arte fala disso, dessa sensação de ser um "outro" em um mundo normativo, um mundo que parece o inverso de mim. A ponte ao fundo fica aqui perto de casa, em Portugal. Como minha arte continua sendo censurada, resolvi cobrir essa figura, será que cobri o bastante? Mãos e pés são indecentes demais também? Chamei essa arte de “Monstro”, ela é uma tentativa de monstrar o meu eu isolado e um universo indiferente, na esperança de algum dia ressoar com mentes igualmente perdidas.

  4. Saudades da Lisa

    Desde que a Lisa morreu, eu não fui mais o mesmo. Na verdade, toda a carga depressiva que eu conseguia segurar nos últimos anos, com remédios, terapia e muito esforço, desmoronou de uma vez em cima de mim depois que a Lisa se foi. Autistas, principalmente os que, como eu, foram diagnosticados tarde, crescem sem entender como se encaixar em um mundo como o nosso, pois muitas das coisas normais para todos, como interações sociais, amenidades e barulhos, por exemplo, funcionam completamente diferentes conosco e os animais nos veem além de tudo isso, os animais nos veem como quem realmente somos e nos amam e aceitam mesmo assim, sem julgamentos, sem nos sentirmos um extraterrestre. A Lisa tinha esse papel para mim. E eu sinto que tinha um papel parecido para ela, já que ela tinha um passado de traumas e muita coisa para superar também. Não tem um dia que eu não sinta falta dela, e não tem um dia que eu não sinta que ela é parte de mim, que ela vive em mim de alguma forma e foi isso que tentei expressar nessa arte.

  5. Sociedade da Asfixia

    Eu tenho um lado de raiva, muita raiva. Ela surge por não conseguir me livrar de algo ainda esperançoso dentro de mim, bem escondido, que diz para esperar e ver o que acontece, mas que só traz novos dias de sofrimento. Geralmente, essa raiva surge com mais intensidade quando sou forçado a fazer algo sem sentido. Algo que não quero fazer, mas sou obrigado. Algo que tenho que lidar e é uma imbecilidade do dia a dia num mundo neurotípico-capitalista. Ela é uma versão distorcida de mim mesmo que me ataca ferozmente enquanto estou sentado na frente do computador ou tentando me acalmar de algum pensamento compulsivo. Essa raiva frequentemente se direciona para o que estou sentindo em relação a ela mesma, num ciclo que, no fim, me faz rebelar contra o meu estado mental e por isso querer continuar. É algo que me bate e faz criar uma fúria em relação à desistência, quase como estar recebendo marteladas de um escultor que nos modela, mas não é nada folclórico-mitológico-religioso, é uma versão de mim mesmo que, no fundo, só quer ajudar.